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segunda-feira, 7 de maio de 2007

Crime?!?



Descobri esta notícia/carta no site Notícias Alentejo e achei no mínimo caricato o relato da situação descrita.

É certo que muitos ”velhotes” circulam em situação de desleixo das suas viaturas, é certo que a idade retira algumas das capacidades para a condução em perfeitas condições e muitos dos idosos já nem deveriam circular dada a sua gritante incapacidade para tal (eu que o diga!!). Mas a situação descrita parece mais um descarado excesso de zelo das autoridades, que em casos semelhantes deveria ter uma atitude mais esclarecedora e pedagógica do que punitiva. Tal como diz o autor: Transgressor mas não criminoso.

Aqui fica a notícia, é extensa mas vale a pena ler :

Por António Saias

Senhor doutor Juiz

Julgo não ter a honra de conhecer V.Exª.. Longe de mim conhecer alguém com o seu estatuto, sobretudo nestas circunstãncias: o senhor num cadeirão montado sobre um estrado – símbolo do patamar superior de quem administra a Justiça – eu numa cadeira vulgar semanticamente designada por Banco do Réu. Não longe de mim, já imagino, um dos guardas que fazia parte da brigada da GNR – que em zeloso cumprimento da Lei me trouxe até aqui. Presumo que não vou ser confrontado com a ameaça de algemas.

Sou um pacato cidadão reformado, à beira dos 70 anos, mais ou menos conhecido aqui na Vila e na Igrejinha, em cuja freguesia vivo – num Monte à beira da Ribeira do Divor. Nunca entrei em brigas, não roubei, não cometi delitos – bom seria que tivesse V.Exª. em seu poder o meu Registo criminal e o meu historial enquanto condutor com cerca de 50 anos de prática ininterrupta. Não atropelei, não estive na origem de acidentes que provocassem vítimas ou danos materiais, nunca, por sorte esbarrei contra o que quer que fosse.

Nunca assisti a uma sessão de Tribunal: um julgamento, uma acareação, sei lá, nem mesmo enquanto testemunha. O voluntarioso e cumpridor chefe de Brigada da GNR – porque a minha carta de condução (diz lá no verso, em letrinhas do tamanho de formigas, era válida até 2003) - não sabia ele-próprio, nem o numeroso contingente sob seu comando, que tipo de infracção iam trabalhar para me punir: contra-ordenação, com respectiva coima, ou multa; ou a situação de CRIME – como concluíram após leituras prolongadas e partilhadas, com recurso a chamadas telefónicas diversas e intermináveis consultas bibliográficas. Isto tudo numa encruzilhada estratégica às Portas de Arraiolos, junto ao desvio para a Igrejinha, entre as duas e as três horas da manhã.

É CRIME, concluíram: o senhor condutor vai ter que se apresentar no Tribunal de Arraiolos. O senhor Doutor Juiz decidirá da pena a aplicar.

Senhor Doutor Juiz, sei que o cidadão-comum não pode alegar ignorância das Leis. Eu tinha que te ter bem presente o conteúdo das letras miudinhas do verso da minha carta de condução. E que dizer das infindáveis consultas, entre as duas e as três horas da manhã, feitas entre os mais de meia-dúzia de elementos da Brigada, com recurso, repito, a chamadas telefónicas, com vista a configurar a infracção – o CRIME – em que acabava de incorrer? Não estariam também eles – TODOS – em situação de ignorância dos Códigos que regem a sua actividade diária?????
– o senhor condutor já não pode pegar na viatura!
– Mas eu moro aqui perto, num Monte antes de chegar à Igrejinha! E não estou bêbedo, não estou incapacitado de conduzir!
– Só depois do julgamento e da renovação da carta....
– Era melhor que depois de tudo isso continuasse ainda impedido de conduzir!!!!
Tiveram a generosidade de me transportar ao Monte, cerca das 3 horas da manhã, onde tive dificuldade em conciliar o sono – dada a minha situação original de acusado (arguido?) de CRIME.

Senhor Dr.Juiz, num país de corrupção generalizada, de uma ética-capacho em que a volúpia do dinheiro manda às urtigas os mais elementares princípios de honestidade, verticalidade, solidariedade social – em que o sistema económico é um pântano de truques e de golpes em que, senhor Dr.Juiz, porque cometo o CRIME de ignorar as letras miudinhas do verso da minha carta de condução aqui estou perante V.Exª. - ao mesmo tempo que morrem nas Estradas portuguesas mais de três pessoas por dia; se realizam corridas de “loucura” na Ponte Vasco da Gama e similares; os atropelamentos mortais acontecem hora-a-hora... não deixa de me parecer excesso de zelo empurrar-me para o Banco dos Réus – perante V.Exª., que tem agora em suas mãos a decisão da pena a aplicar-me, que o seu superior juízo determinará como mais conveniente.

Sei de situações (ocorre-me a do saudoso filósofo/pensador Agostinho da Silva, que consabidamente não usava qualquer tipo de documentos de identificação) sei de situações, repito, em que o juiz se decide pela aplicação de penas simbólicas como a prestação de trabalhos cívicos – em favor da comunidade.

Fosse esse o veredicto de V.Exª, senhor Dr. Juiz, e já este Tribunal me estaria devolvendo a carta-de-condução, sob condição de actualização num prazo razoável, evitando que falte às próximas aulas do Curso de AGRICULTUR BIOLÓGICA, na Escola Sénior da Igrejinha, onde, há mais de seis meses, sem receber um cêntimo, me esforço por transmitir os meus modestos conhecimentos.
– E a par disso, senhor Dr. Juiz, mande, por favor, apagar o estigma semântico da minha inocente prevaricação. CRIME?
– Não será excessivo?

António Saias – Transgressor mas não criminoso

Fonte: noticiasalentejo.pt

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